Abolição
Não quero renunciar à vida
para me entregar à poesia.
Nem tampouco me oferecer em sacrifício
para enaltecer a história humana.
Quero ser brisa solta a vagar no dia.
Quero ser fraca, cansada e mundana.
Cheia de vontade de errar o ofício
e vazia de crítica pelo profano.
Quero que nada saia como os planos,
desejo nunca entender o caminho.
Prefiro ser burra a ser hipócrita.
Faço piruetas de salto, enalteço a chacota.
Não me importo em largar a rosa
e abraçar o espinho.
Eu sou um caminho torto, duma via florida.
Renego o cômodo e cambaleio formosa.
Escolho mesmo não entender nada,
não saber se fiz mal ou correto.
Deliberadamente rezo pelo azar
e torço para o meu andar não ser reto.
Quero errar tanto que esgotada peça arrego.
E mesmo assim não obtenha, e siga.
Desejo tudo que perturbe o sossego,
dou parabéns a tudo de bom que renego.
Não me irrito com as críticas,
não pergunto a opinião alheia.
Desta vida toda, só quero ser cheia.
Autêntica, espontânea, se assim o quiser.
Quero ser hoje homem, amanhã mulher.
E não ter definição em cifras e nomes.
Quero só desse mundo ter fome.
Seguir perdida, com a impressão errada.
Nunca desejar desejar nada.
Se o tempo parar, e a escada cair,
eu quero apenas sentir
e não ter medo do podre.
Quero ser o quanto mais pobre
e o quanto mais louco
essas asas mancas de pombo
me deixarem ser.
E, um dia, quando a morte bater na minha casa,
eu dou um chute na cara dela.
Rio debochada, cuspo da janela.
E vou carregada pelos pés, como
uma foliã exagerada expulsa da festa.
Mas o meu público jamais esquecerá a algazarra.
E, no céu, continuarei bagunçando as arestas.